Fonte: O Estado de S.Paulo – 15/05/2021.
Em recente julgamento, ocorrido em 12/5/2021, a Segunda Seção do STJ firmou o entendimento de que, na recuperação judicial, a supressão ou substituição de uma garantia real ou fidejussória apenas pode acontecer com a anuência expressa do credor titular desta garantia (Recurso Especial nº 1.794.209/SP).
No processo de recuperação judicial, após a apresentação do plano pela recuperanda, é convocada a Assembleia Geral de Credores. O conclave tem o objetivo de aprovar ou reprovar, por maioria, o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor. Assim que o plano é aprovado pela maioria dos credores, ocorre a chamada “novação” das obrigações, ou seja, as condições contratuais originariamente pactuadas são modificadas e algumas delas até mesmo extintas e substituídas em favor da devedora. É o que prevê o art. 59, caput, da Lei 11.101/05. Alteram-se as características, prazos e valores dos créditos de acordo com o plano recuperacional aprovado. A partir da homologação judicial da aprovação assemblear, devem ser respeitadas as condições de pagamento dos créditos na forma estabelecida pela coletividade de credores.
Contudo, em diversas recuperações judiciais, surgiram questionamentos jurídicos sobre o direito dos credores titulares de garantia real e/ou fidejussória, mais especificamente daqueles que não aprovaram o plano recuperacional e, portanto, não concordaram em ver sua garantia suprimida ou substituída ou até mesmo extinta. Pairavam algumas dúvidas: os credores dissidentes deveriam se curvar ao plano? As suas garantias estariam incluídas na novação mesmo contra a sua vontade? Ou suas garantias devem ser preservadas?
A Corte, por maioria, negou provimento ao recurso que suscitava a possibilidade de supressão ou substituição de garantia quando há tal previsão em plano de recuperação judicial, desde que este tenha sido aprovado pela maioria dos credores em assembleia geral, mesmo que sem a anuência expressa do credor titular da referida garantia.
Ao nosso ver, a resposta foi acertada. E sempre esteve expressa na Lei. Mas como existiam entendimentos divergentes da jurisprudência, fez-se necessário invocar previsão regimental e submeter a tese jurídica à Segunda Seção do STJ. O objetivo era pacificar e estabilizar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Como dito linhas acima, tal se deu através do Recurso Especial nº 1.794.209/SP. A Corte entendeu que o art. 49, § 1º da Lei 11.101/05, que prevê que, apesar dos créditos estarem sujeitos à recuperação judicial, os coobrigados permanecem vinculados às obrigações originariamente assumidas. Além disso, o STJ ressaltou que o art. 50, §1º da mesma lei é bastante claro e não dá margem a qualquer tipo de dúvida, assegurando que a supressão ou substituição de uma garantia real pode acontecer se, e somente se, houver aprovação expressa do credor titular.
Em suma, entendeu-se que as garantias são firmadas para trazer segurança jurídica aos negócios. E assim fomentar investimentos no Brasil. Por isso, a garantia real tem alto grau de hierarquia, consoante prevê o art. 83, II, Lei 11.101/05.
O objetivo da garantia é proteger o crédito e reduzir a possibilidade de o credor ser prejudicado em caso de inadimplência.
Se houvesse a possibilidade de supressão ou substituição das garantias mesmo sem a anuência do credor titular, não haveria necessidade de formação de qualquer tipo de garantia. O instituto perderia força devido à falta de segurança, acabando com todo objetivo de sua existência. Cairia em desuso.
Significa dizer que acaso prevalecesse uma interpretação contrária ao que restou decidido pela Segunda Seção do STJ, isso macularia a função da norma jurídica, já que esvaziaria a eficiência das garantias reais e pessoais.
Assim, é inequívoca a ideia de que o Poder Judiciário deve fazer o controle de legalidade e da boa-fé objetiva de cláusula de um plano de recuperação judicial.
Cláusulas que estabelecem a supressão ou substituição de garantias reais ou fidejussórias sem a anuência expressa do credor titular não respeitam os artigos 138 e ss. e 166 do Código Civil. Em outras palavras, este tipo de cláusula não tem os atributos necessários para gerar efeitos jurídicos. Neste sentido, cita-se trecho da recente decisão do Recurso Especial nº 1.794.209/SP:
“Assim, a conclusão que melhor equaciona o binômio ‘preservação da empresa viável x preservação da atividade econômica com um todo’ é a de que a cláusula que estende a novação aos coobrigados seria apenas legítima e oponível aos credores que aprovarem o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz, portanto, no tocante aos credores que não se fizeram presentes quando da assembleia geral de credores, abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição […]”
A preservação da empresa devedora não pode gerar mais custos do que benefícios. E quando se despreza as garantias, enfraquecendo o instituto da recuperação, o reflexo socio econômico negativo é evidente: insegurança jurídica, altos custos nos contratos de mútuo e financiamento, já que os credores não poderão receber seus créditos de forma eficiente.
A Lei de Recuperação Judicial tem como um de seus objetivos a diminuição do custo de captação de dinheiro no mercado financeiro para democratizar o acesso ao crédito. E crédito de forma mais barata somente é possível com a higidez das garantias.
Sendo assim, não restam dúvidas quanto ao acerto da decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.794.209/SP, já que preconizou o respeito à lei, preservou a higidez dos contratos, valorizou a função econômica das garantias, de modo a gerar um ambiente negocial que, por via reflexa, atrai mais investidores ao país.