Fonte: O Estado de S. Paulo – 15/07/2021
O instituto da recuperação judicial tem sido pauta de inúmeras matérias acadêmicas. Diante das modificações criadas pela Lei 14.112/2020, é necessária uma releitura dos conceitos de superação da crise e os mecanismos colocados à disposição dos “players” deste complexo procedimento.
Logicamente que a discussão sempre vem arregimentada nos interesses de credores – que buscam minimizar a dificuldade na liquidação de seus créditos – e no senso de sobrevivência dos devedores – que precisam manter a sua operacionalidade. Tem-se, assim, um binômio jurídico que acompanha as obrigações de um modo geral: a possibilidade-necessidade, que serve como uma balança para medir os sacrifícios de cada lado da moeda.
Desde 2005, quando foi instituída a Lei de Recuperação Judicial, os advogados dos recuperandos tentavam fazer mágica para proporcionar a tão almejada recuperação econômica de seus clientes, ajustando no plano de pagamentos bases que possibilitassem o pagamento da dívida de acordo com o apertado fluxo de caixa da empresa.
Criou-se, assim, uma cláusula específica no plano de pagamento que previa suprimir as garantias prestadas na tomada de empréstimos, consubstanciadas na liberação das hipotecas, penhores, bem como dos avais e fianças dados, que em sua grande maioria eram e continuam sendo os próprios sócios das empresas devedoras.
A referida cláusula estava alicerçada na seguinte ideia: a novação da dívida concursal, ou seja, aquela submetida ao plano de pagamento, deveria trazer como lógica a liberação da obrigação acessória, representada pelas garantias reais e fidejussórias que amparavam as operações de crédito, regra basilar do Código Civil, precisamente nos arts. 59 e 61.
Tratou-se de não apenas contemplar o resultado jurídico da novação, mas uma necessidade de mercado, com o propósito de despertar no credor o senso de colaboração no ajuste da dívida (poder negocial) e a liberação dos bens então onerados com o fim de fomentar eventual captação de recursos financeiros (otimização do ativo disponível)!
Esta regra se concretizou, criando no mercado as denominadas DIP’s, agentes financeiros devidamente capitalizados que direcionaram a sua boa saúde financeira em investimento nas empresas devedoras, melhorando significativamente o resultado das companhias. Ao invés de simplesmente especularem spreds na captação e fornecimento do dinheiro, começaram a apostar na produção por meio de injeção de capital forte para a manutenção e crescimento da empresa em estado de recuperação econômico-financeira.
Esta lógica finalística criou no Poder Judiciário, precisamente no Superior Tribunal de Justiça, em especial na 3ª Turma, o entendimento de que este tipo de cláusula contida no plano é plenamente legal. Ou seja, os ministros Marco Aurélio Belizze, Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino viram que a liberação das garantias não decorria unicamente da vontade do devedor, mas sim de uma necessidade de mercado para que a operação – sobre os bens onerados por penhor, hipoteca, inclusive de terceiros – voltasse a ser objeto de busca por eventuais linhas de crédito.
Deste modo, eles mantiveram a validade da cláusula, já que a vontade da liberação e a necessidade de acesso a novos recursos foi aprovada pelos maiores interessados: a classe de credores detentores das garantias. Lançou-se a compreensão de que – havendo premissa específica de supressão – a anuência então exigida pela Lei de Recuperação Judicial foi alcançada pela aprovação do plano, vinculando todos os credores de modo indistinto (AgInt no REsp 1773952/RS, REsp 1.850.287/SP, REsp 1.863.842/RS, AgInt no REsp 1.838.568/AC).
Quando se imaginou que esta discussão estava praticamente encerrada, houve a afetação do Tema 885, em que a Segunda Seção, por maioria de votos, decidiu que a extinção das garantias, seja ela real (prestada pela própria devedora) ou fidejussória (por terceiros), só tem eficácia se o titular da garantia, ou seja, o credor, assim o autorizar.
Todavia, esta decisão mostra-se inócua. Isso porque a Lei 11.101/05 passou a viger sob o enfoque de que o financiamento do devedor é necessário, incluindo um capítulo específico denominado “Do Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial”.
É dizer, uma regra de ouro parametrizada pelos planos de pagamento já apresentados nas recuperações judiciais em trâmite, que agora, textualmente, autoriza a supressão da vontade do credor primevo em anuir com a nova operação de crédito.
Hoje, o legislador disciplina que “durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)” – (art. 69-A). Há permissão, assim, que este novo crédito seja considerado, inclusive, extraconcursal. É impossível de modificar-se esta qualidade de crédito por decisão judicial, inclusive em fase recursal (art. 69-B), dispensando a anuência do detentor da garantia original (art. 69-C) exatamente como consta dos planos aprovados com cláusula de supressão de garantia!
Esta nova redação sacramenta a ideia de que o financiamento, lógica para a liberação das garantias prestadas, efetivamente, não depende da anuência do credor. Comprova-se, dessa forma, que a posição da 3ª Turma do STJ é a que melhor ressoa a engrenagem jurídica deste tipo de operação financeira.
Afinal, para trazer um apoiador ao plano, mediante crédito novo e gravação de ônus, o próprio juiz pode dispensar a vontade do credor primário e detentor da garantia. Assim, sua anuência, além de desnecessária, não é condição “sine quo non” para a formação deste negócio jurídico (supressão das garantias). Logo, respeitada a decisão proferida no Tema 885, tem-se, pela nova redação legal e a lógica em que se encontra inserida, o plano de recuperação judicial com cláusula de supressão de garantia tem plena eficácia jurídica se a manifestação da respectiva classe de credores – e não exclusivamente o detentor da garantia original – dispor sobre a possibilidade da supressão, ainda mais quando há, agora, literalidade da lei neste sentido!
Neste propósito, a súmula decorrente do Tema 885 está em desarmonia com o novo regramento, já que a própria lei possibilita suprimir a vontade do credor para alteração da garantia anteriormente prestada.