Fonte: Portal Consultor Jurídico (Conjur) – 14/09/2021.
A crise do devedor enseja a comunhão de perdas dos credores, da qual participam, em menor ou maior grau, todos os envolvidos [1]. É o chamado “princípio da comunhão das perdas” (Grundsatz der Verlustgemeinschaft) [2], o qual, sob a roupagem da igualdade de tratamento (par conditio creditorum), é norma essencial do direito falimentar.
Trata-se de pilar de sustentação dos regimes da crise empresarial: enquanto nas execuções individuais o princípio da prioridade (Prioritätsprinzip) está em primeiro plano, as execuções coletivas são forjadas pelo princípio da igualdade de tratamento dos credores (Gleichbehandlungsgrundsatz). Dessa forma, a diretriz básica de um processo de insolvência está no objetivo de satisfazer de modo igualitário a coletividade dos credores, ainda que parcialmente[3].
Está-se diante de uma verdadeira cláusula pétrea do direito concursal, materializada numa série de dispositivos da Lei 11.101/2005 — não por acaso há, inclusive, sanções de ordem penal em caso de sua afronta —, respeitando-se, por óbvio, as preferências legalmente estabelecidas.
E é consenso que a par conditio creditorum aplica-se não apenas à execução coletiva falimentar, mas também aos processos de soerguimento da crise empresarial (leia-se recuperação judicial e extrajudicial, que também tratam de comunhão de interesses dos credores) [4], mesmo que não exista previsão legal expressa nesse sentido na Lei 11.101/2005 [5]
Não por outra razão é que “(o) plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado” [6] — ensinamento que, além de ser admitido pela doutrina e pela jurisprudência [7], foi, em certa medida, reconhecido pelo legislador com a novel redação dada pela Lei 14.112/2020 ao artigo 67, parágrafo único, da LREF.
Os motivos justificadores da aplicação da regra da igualdade de tratamento entre os credores não param por aqui. Há outra questão elementar nos processos de recuperação judicial, de cunho sistêmico, que pauta sua aplicação: o critério cronológico, que serve de organizador temporal do sistema recuperatório. O artigo 49, caput, da LREF determina, de forma correta e categórica, que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
Pela sistemática da LREF, a determinação do momento de formação do crédito é um dos critérios determinantes para a participação compulsória do credor no procedimento recuperatório. Houve, nesse particular e a par dos critérios de ordem material (particularmente o existente no artigo 49, §3º, da LREF), uma seleção cronológica, temporal, por parte do legislador quanto a quem deve e quem não deve estar sujeito ao processo, sem prejuízo de credores extraconcursais (pelo critério em questão, aqueles cujos créditos foram constituídos após o pedido de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial) aderirem, oportunamente, ao plano de recuperação que será apresentado e votado pela assembleia geral de credores.
Assim, preenchido tal critério, todos estão no mesmo sistema, devendo todos os créditos serem corrigidos e atualizados até a data da distribuição do pedido de recuperação judicial (LREF, artigo 9º, II) — sendo que, então, os créditos serão pagos nos termos do plano de recuperação judicial (ou plano de recuperação extrajudicial) ou, em caso de convolação da recuperação judicial em falência, de acordo com o processo falimentar.
Não por acaso a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já firmou a tese no sentido de que para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador, ainda que, então, a decisão condenatória seja posterior à distribuição do pedido de recuperação judicial [8] — em que pese o próprio STJ tenha se manifestado em sentido diverso, erroneamente em nosso sentir, ao afirmar que o credor que não tenha sido arrolado na relação de credores deteria a prerrogativa de decidir entre habilitar o seu crédito ou promover a execução individual após finda a recuperação [9], oportunidade na qual, inclusive, obra de nossa autoria foi citada de modo equivocado [10]. Na primeira linha sustentada pelo STJ — e correta na nossa visão —, somente os créditos constituídos após o ingresso do devedor em recuperação judicial estão excluídos dos efeitos do plano de recuperação judicial; dessa forma, honorários sucumbenciais fixados em sentença após a distribuição do pedido não estariam sujeitos ao procedimento recuperatório, ressalvando-se o controle dos atos expropriatórios pelo juízo universal [11].
Diante disso, causa espécie a alteração promovida pela Lei 14.195/2021 (supostamente diploma legal que busca trazer mais segurança jurídica e melhorar o ambiente de negócios no Brasil) na Lei 4.886/65 (Lei da Representação Comercial). Isso porque, além dos questionamentos sobre a constitucionalidade do processo legislativo e a par das matérias completamente diversas tratadas pela Lei 14.195/2021, a nova redação dada ao artigo 44 da Lei 4.886/65 é imprecisa e arbitrária. Vejamos:
“Artigo 44. No caso de falência ou de recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação estabelecida com base nesta Lei, serão consideradas créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.
Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em cinco anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta lei.”
Em primeiro lugar, a omissão legislativa é gritante (e grave): o legislador simplesmente esqueceu que o crédito de representantes comerciais, equiparados aos créditos trabalhistas, também pode ser reestruturado em uma recuperação extrajudicial, nos termos da reforma produzida pela Lei 14.112/2020.
Em segundo lugar, de acordo com a novel redação dada ao artigo 44, parágrafo único, os créditos do representante comercial não estarão sujeitos à recuperação judicial ainda que existentes na data do pedido ajuizado pelo devedor, desde que eventual sentença condenatória tenha transitado em julgado após a distribuição do pedido recuperatório.
Além de ir de encontro ao artigo 49 da LREF, trata-se de privilégio legal concedido a uma classe de credores sem qualquer fundamento jurídico, em evidente afronta à igualdade de tratamento na própria classe trabalhista, a qual os créditos de representantes comerciais são equiparados: ocorre que, de forma inexplicável, essa equiparação é turbinada a ponto de o equiparado receber tratamento mais benéfico que a classe que serviu de paradigma. Mas a afronta não para por aí: o dispositivo cria, de fato, um privilégio extremamente exagerado ao dispor que a execução de tais créditos sequer está sujeita à competência do juízo da recuperação, podendo prosseguir inclusive no que diz respeito a atos expropriatórios.
Em terceiro lugar, há problemas hermenêuticos: se vier a prosperar o privilégio legal, seria correto dizer que, diante da redação dada ao parágrafo único do artigo 44, tal privilégio não deveria ser aplicado na hipótese de recuperação extrajudicial? Não faz sentido algum, mas a interpretação literal do dispositivo leva a essa conclusão.
Em quarto lugar, se a recuperação judicial for convolada em falência, tal crédito, existente na data do pedido da recuperação judicial, mas cuja sentença condenatória transitou em julgado somente após a distribuição da ação recuperacional, será concursal ou deve ser enquadrado como extraconcursal (artigo 67 c/c artigo 84 da LREF)?
A confusão gerada pela Lei 14.195/2021 é generalizada no que diz respeito à sujeição de créditos aos regimes recuperatórios. É evidente que nenhum credor quer se encontrar no bojo de um processo recuperacional ou falimentar. Todavia, não é com a criação de privilégios desmedidos nem com um fetichismo legislativo que se conseguirá trazer mais estabilidade e criar um ambiente de negócios adequado no País — sem contar que confusões como esta tendem a estimular ainda mais a extensão da curva de tempo para solução de litígios, tornando ainda mais moroso o processo judicial que já é sabidamente lento.