Fonte: Portal Consultor Jurídico – 19/09/2021.
A edição da Lei nº 14.112/2020 promove alterações no regulamento da recuperação judicial, extrajudicial e a falência no Brasil (Lei nº 11.101/2005), provoca impacto na execução de créditos trabalhistas e consolida a cooperação judiciária nacional, como forma de atuação dos operadores do Direito para dirimir as lides envolvendo empresas em recuperação judicial. Diante disso, relevante a análise das inovações aplicada ao processo de execução trabalhista.
O contrato de trabalho é marcado pela lealdade e boa-fé entre os particulares, de modo que a utilização do processo de recuperação judicial como uma “blindagem patrimonial do empregador” não pode ser admitida.
Na prática forense, o ajuizamento da ação falimentar obsta a quitação de créditos trabalhistas reconhecidos em decisões da Justiça do Trabalho, que têm seu cumprimento sobrestado pelo deferimento do processamento da recuperação judicial no juízo cível, acarretando, não raro, frustração da execução trabalhista. Assim, evidente o prejuízo ao princípio da efetividade da execução, o qual prescreve: “A atividade executiva desenvolve-se com o objetivo de permitir a fruição do bem da vida pelo titular do direito, nos exatos moldes reconhecidos no título executivo, com a maior brevidade possível” [1].
O Código de Processo Civil adota o “princípio da cooperação”, que deriva da cláusula geral de boa-fé [2] ao estabelecer, em seu artigo 6º, que: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Desde 2015, o Código Adjetivo prevê a possibilidade de atos concertados entre os juízes cooperantes, sobretudo a adoção de procedimento para a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas e a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial (artigo 69, §2º, IV e V).
A doutrina especializada esclarece que, diferentemente do adversarial e inquisitorial, o modelo cooperativo de resolução de demandas é o mais adequado para uma democracia, enquanto técnica de construção de um processo que possui igualitarismo, em conformidade com as intenções, participativa, colaborativa e plural, próprias dos regimes democráticos [3].
Fato é que o atual regulamento falimentar consagra um enfraquecimento da tutela do crédito trabalhista, beneficiando a recuperação econômica da sociedade empresária. Por exemplo, a “…proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência“, prevista no inciso III do artigo 6º da Lei nº 11.101/2005. De igual modo, o §7º do artigo 56, que, sem correspondência na legislação anterior, confere a possibilidade de que o plano de recuperação judicial apresentado pelos credores possa prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da sociedade devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor.
O entendimento prevalecente no âmbito dos tribunais superiores, antes da edição da nova lei, era de que o juízo da recuperação é competente para analisar atos de garantia e constrição patrimonial relacionados à execução contra a empresa recuperanda, independentemente da natureza do crédito perseguido. Seguidamente, o STJ determina a cassação de medidas constritivas ou expropriatórias determinadas por juízos trabalhistas [4], tendo inclusive definido que na Justiça Cível deve ser alocado depósito recursal feitos no âmbito de processo trabalhista [5]. A dificuldade para satisfação da execução é manifesta.
De outro lado, a jurisprudência do TST é firme no sentido de que, mesmo em casos de falência ou recuperação judicial, há possibilidade de redirecionamento da execução a empresas componentes do grupo econômico, responsáveis subsidiários ou até mesmo sócios da empresa falida ou em recuperação judicial [6].
Uma análise descuidada da nova lei pode indicar que o juízo universal da falência foi prestigiado em detrimento da possibilidade de execução direta do magistrado trabalhista. Não é essa a melhor exegese da legislação recente.
Em verdade, a recuperação judicial não importa na automática extinção e/ou suspensão das medidas judiciais ou mesmo na incompetência do juízo trabalhista sentenciante para dar cumprimento ao seu comando, o que se poder inferir da nova redação do §7º do artigo 6º da Lei de Falência, a saber: “A competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do artigo 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no artigo 805 do referido Código“ (grifo do autor).
A nova lei prescreve a cooperação entre os juízes, fortalecendo a relação entre os diferentes ramos do Poder Judiciário, em prol de um modelo harmônico e cooperativo para resolução dos litígios contra a empresa em recuperação judicial. Há, nesses casos, necessidade de uma atuação conjunta entre o juízo falimentar e o juízo trabalhista para adoção dos atos de constrição contra o devedor.
É de conhecimento público e notório que a Justiça do Trabalho tem expertise no uso das ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial, visando a agilizar a solução de processos na fase de execução, que constituem um dos maiores gargalos na tramitação processual dessa especializada. De outra banda, por força de lei, o juízo universal da recuperação tem o controle sobre os atos judiciais que interferem no procedimento de soerguimento da empresa e, por isso, a responsabilidade de zelar pela higidez financeira da sociedade empresária, com a finalidade da satisfação de créditos inadimplidos.
Tais competências, entretanto, não podem ser vistas como o imediato esvaziamento de medidas executivas e pesquisas patrimoniais contra o devedor, sobretudo quando não são respeitados os prazos e os requisitos da Lei de Recuperação, sob pena de o procedimento ser mais valorizado que o direito das pessoas envolvidas no conflito judicial.
Os sujeitos processuais estão vinculados aos deveres anexos da cláusula geral de boa-fé, que são aquelas prestações inerentes a toda relação pactuada (informação, fidelidade, respeito, cooperação e confiança), de modo que o processo de recuperação judicial não pode significar um “calote legalizado” [7].
É imprescindível a adoção um modelo cooperativo, respeitando medidas judiciais de cada ramo do Judiciário, sempre no interesse de salvaguardar o interesse das pessoas envolvidas no conflito, inclusive, com a manutenção da empresa (postos de trabalho). Sem olvidar de outros impactos processuais provocados pela alteração da lei, a inovação estabelece um dever ser para os órgãos jurisdicionais de diferentes ramos cooperem entre si para satisfação dos processos, evitando-se, inclusive, o atrito interno e desgaste da imagem do próprio Poder Judiciário.
A propósito, o STJ cancelou a afetação do Tema Repetitivo nº 987, que tinha a seguinte questão submetida ao julgamento: “Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária“. Na ocasião da deliberação, o ministro relator ressaltou que: “Na verdade, cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (artigo 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial” [8].
Digna de reverência, no particular, a Resolução Nº 350 do CNJ, de 27/10/2020 [9], que dispõe sobre a cooperação judiciária nacional, e ao regulamentar o modelo cooperativo entre os órgãos do Poder Judiciário, autoriza o auxílio direto entre juízes, constituído como mecanismo contemporâneo, desburocratizado e ágil para o cumprimento de atos judiciais fora da esfera de competência do juízo requerente ou em interseção com este. O ato normativo, ainda, esclarece que medidas conjuntas e concertadas entre os juízos são instrumento de gestão processual, para coordenação de funções e compartilhamento de competências.
Ora, o objetivo da execução é a entrega do bem da vida, de modo que discussões em derredor dos limites processuais e da competência jurisdicional acarretam benefício ao devedor, prejuízo aos princípios da efetividade, celeridade e economia processual, com dano evidente ao exequente, que, na seara trabalhista, na maioria das vezes aguarda o pagamento de créditos alimentares.
A falência e a recuperação judicial em nada prejudicam os direitos do empregado (artigo 449 da CLT), quaisquer que sejam eles, assim como a respectiva postulação em juízo e a sua concreta satisfação. A mudança legislativa não alterou esse cenário e não tem o condão de modificá-lo, porquanto os direitos sociais têm status de cláusula pétrea do ordenamento jurídico brasileiro (artigo 60, §4º, IV, da CF).
Concluo que a lei nova determina a adoção de atos concertados entre juízes para cumprimento de execuções trabalhistas contra o devedor em recuperação judicial. Medida louvável, que assegura a efetividade de decisões judiciais no Brasil, Estado comprometido, na ordem interna, com a solução pacífica das controvérsias, representando garantia de direitos fundamentais, enquanto valores supremos da sociedade democrática, fundada na dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa [10].