Pedido de recuperação judicial levantou debates sobre indenização dos danos pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais
Fonte: JOTA.info – 17/07/2021.
“Para todo problema complexo há uma solução que é simples, clara e errada”. H.L. Mencken, famoso jornalista norte-americano, é o autor dessa frase que se tornou mundialmente conhecida e que não poderia ser mais apropriada quando se trata da recuperação judicial da Samarco e a suposta submissão dos “créditos” de Renova.
O recente pedido de recuperação judicial da empresa vem dando margem a debates e discussões que envolvem os recursos relativos à reparação e compensação dos danos relacionados ao rompimento na barragem de Fundão, ocorrido em 2015. Contudo geralmente o problema não é avaliado em sua efetiva dimensão e complexidade.
Falta cuidado na consideração de informações cruciais à análise correta do caso. Declarações são dadas na forma de opinião em caráter anônimo o que pode favorecer declarações enviesadas. Fato é que a situação dos valores referentes à indenização dos danos decorrentes do rompimento da Barragem do Fundão e ligados à Renova e à Samarco vai muito além das opiniões simplistas que têm assolado os órgãos de imprensa.
É preciso começar pelo propósito da Renova e do que sua criação representa. Após o rompimento em 2015, diante da diversidade de danos e da miríade de impactados, a Samarco e suas acionistas (Vale e BHP) tornaram-se alvo de grande quantidade de ações judiciais: ações propostas diretamente pelos impactados, ações propostas por entidades representativas de interesses como o próprio Ministério Público, ações de entidades de defesa de direitos coletivos e difusos etc; muitas delas com causas de pedir semelhantes, duplicadas, concorrentes, ou mesmo incompatíveis, ainda que todas buscando reparação, ou ao menos compensação pelos danos.
E todas direcionadas unicamente à tutela dos interesses específicos dos representados, o que gerou uma certa concorrência entre os procedimentos e uma enorme corrida por bens da Samarco e seus acionistas com base em valores estimados às pressas, de forma imprecisa, incompleta ou preventivamente inflada.
Não foi necessário muito tempo para perceber-se que a descoordenação das ações judiciais e a atuação de agentes que buscavam na essência um mesmo objetivo, mas para públicos indevidamente concorrentes, não seria capaz de oferecer uma resposta satisfatória para o complexo problema decorrente do rompimento.
Os envolvidos então reuniram-se, sob a tutela do Judiciário, para buscar uma solução eficiente que garantisse, por um lado, que todos os danos envolvidos nas ações seriam efetivamente reparados ou compensados na mais justa e eficiente forma possível; de outro, que a Samarco pudesse adaptar suas atividades aos melhores padrões de segurança ambiental e voltasse a operar, não só gerando empregos nas regiões afetadas e tributos, mas com o compromisso de pagar qualquer valor definido como devido no momento em que fosse necessário – e não antes, por meio de estimativas.
Foi assim que todos os envolvidos, inspirados em soluções já implantadas com sucesso em casos semelhantes de grande repercussão em outros países, e com base em permissão expressa da lei nacional, optaram por criar um mecanismo mais eficiente e que garantisse soluções mais apropriadas e justas de reparação de danos.
Isso foi possível por meio da celebração de um “Termo Transação e Ajustamento de Conduta” (TTAC). Com ele abandonou-se a versão tradicional de responsabilização por danos ambientais e criou-se uma sofisticada estrutura centrada na criação de uma fundação, a Renova, que, mais que obrigações, tem o propósito específico de garantir a mais eficiente e justa reparação e compensação dos danos decorrentes do rompimento da barragem do Fundão.
Isso significa a certeza de que todos os implicados envolvidos em ações englobadas pelo TTAC – pessoas, comunidades, municípios, biomas etc. – terão certeza de reparação ou compensação. Para tanto, se por um lado o TTAC expressamente menciona que não se reconhece responsabilidade extracontratual de Samarco ou de suas sócias pelo rompimento (abandonando de vez a responsabilidade ambiental tradicional), por outro contempla 42(!) programas de reparação e compensação de danos socioeconômicos e socioambientais decorrentes do rompimento.
Previu-se ainda o “Programa de Negociação Coordenada”, de adesão voluntária pelos impactados, voltado a viabilizar acordos de ressarcimento e indenização dos prejuízos causados aos impactados, em bases negociais, sem necessidade de pronunciamento judicial, e de acordo com parâmetros de indenização e critérios de elegibilidade pré-estabelecidos e fiscalizados pelo Poder Público. Em outras palavras, criou-se um moderno mecanismo extrajudicial (mas homologado judicialmente e fiscalizado de perto pela sociedade civil e pelo Poder Público) marcado pela adequação ao endereçamento da reparação e compensação dos danos socioambientais e socioeconômicos decorrentes especificamente do rompimento da barragem do Fundão.
A estrutura de gestão da Renova foi objeto de TAC específico que garante a participação democrática de representantes do Ministério Público dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e demais entidades representativas de interesses múltiplos, tais como o IBAMA, ICMBio, ANA, DNPM, FUNAI, IEF, IGAM, FEAM, IEMA, IDAF e AGERH, todos signatários dos TACs, além de representantes das comunidades implicadas.
Os TACs mudam completamente o caráter da responsabilidade das partes envolvidas – e é esse o ponto que vem sendo sistematicamente desconsiderado. Abandona-se o inefetivo modelo tradicional de responsabilidade ambiental extracontratual que é substituído por um modelo contratual especificamente elaborado, sofisticado, com assunção de compromissos com o resultado ótimo da solução do problema.
Tanto é assim, que por um terceiro TAC Samarco renunciou a prescrição, que é a perda de um direito em razão do decurso do tempo, o que implica o compromisso de ressarcir danos ainda que esses venham a ser conhecidos somente daqui a dezenas ou mesmo centenas de anos. É um modelo inovador, baseado em disposições normativas consolidadas, mas que representa um enorme passo para o Direito. Oferece uma solução transparente, democrática, e que só atinge o patrimônio do agente causador na medida dos valores de ressarcimento concretizados e necessários, permitindo a manutenção de postos de trabalho, geração de impostos, e consequentemente não aumentando o já grande impacto na comunidade.
Como contrato que é – e consequentemente ato jurídico perfeito, homologado judicialmente – o TTAC define claramente responsabilidades contratuais dos envolvidos. A fundação Renova passa a ser a única responsável pela apuração e pagamento dos valores devidos a título de reparação e compensação aos implicados. É possível dizer, inclusive, que para a Renova trata-se de mais do que simples “obrigação” porque a reparação dos danos é, na verdade, seu propósito, seu objetivo final, sua razão de existência, que vem refletida nos termos de seus estatutos.
Já o custeio dos valores necessários ao sucesso da atividade da Renova e da realização e implementação dos programas de reparação e compensação socioeconômica e socioambiental é compromisso de Samarco, a ser satisfeito não por estimativa ou imprecisas projeções, mas por chamadas concretas de aportes, na medida em que os valores vão se materializando. As partes elaboram orçamentos plurianuais, anuais e mensais, mas simplesmente para fins de referência, porque só uma vez concretizadas as necessidades da fundação Renova, Samarco deve aportar o valor correspondente àquele mês.
As acionistas de Samarco (Vale e BHP), por seu turno, diferentemente do que ocorreria no caso de responsabilidades extracontratuais em que se haveria ainda de verificar hipóteses legais expressas de qualificação como devedoras solidárias dos valores devidos a título de ressarcimento, pelo TTAC só respondem subsidiariamente na medida de 50% para cada uma, somente caso Samarco deixe de aportar o valor que Renova lhe solicitar.
Não há mais solidariedade entre sócias e Samarco e isso não implica nem remotamente redução da garantia de ressarcimento dos implicados, muito pelo contrário.
É essa a estrutura de responsabilidade contratual de Samarco e suas sócias decorrentes do TTAC e dos TACs Governança e Prescrição, todos eles públicos e acessíveis a quem possa interessar, e que vem sendo reiteradamente desconsiderada nas declarações públicas. Desde o TTAC, e enquanto este estiver em vigor, (i) não há responsabilidade de Samarco, muito menos de suas acionistas Vale e BHP, pelo ressarcimento de danos submetidos ao TTAC; (ii) Renova é a única responsável por apurar, elaborar planos de solução e efetivar a reparação ou compensação dos danos abrangidos pelo TTAC, em seus 42 programas; (iii) uma das razões de ser do TTAC é justamente evitar a antecipação da fixação de valores referentes aos supostos danos decorrentes do rompimento da Barragem do Fundão, por meio de estimativas e projeções sujeitos a desvios e erros de grande magnitude, limitados no tempo, e antecipar desnecessariamente a expropriação de tais valores em prejuízo da capacidade de Samarco de gerar riquezas e arcar com todos os valores. Nada disso é compatível com a submissão de um crédito astronômico a ser estimado pela Samarco somente para ser tratado na recuperação judicial em igualdade de condições com os credores quirografários financeiros.
Essa estrutura sofisticada, em linha com as mais modernas soluções para casos semelhantes implementadas mundo afora, vem sendo sistematicamente ignorada nos comentários e manifestações sobre seus reflexos na Recuperação Judicial de Samarco. E, note-se, as críticas nunca vêm dos implicados – efetivos beneficiados pela criação da Renova – mas de representantes de credores sofisticados, muitos dos quais, diferentemente das vítimas, adquiriram seus créditos em mercado, depois do rompimento, em operações comuns – e legítimas – de especulação.
Não obstante haja casos em que ações específicas pessoais, baseadas em responsabilidade ambiental comum, levaram à constituição de obrigações de ressarcimento de Samarco que estão devidamente listadas como crédito na recuperação judicial, tudo o que está abrangido pelo TTAC submete-se a outro regime jurídico, de caráter contratual, e para o qual os créditos contra a Samarco surgem com o tempo, na medida em que se concretizam as necessidades de aporte de capital pela fundação Renova, a partir de sua gestão multiparticipativa e supervisionada pelo Pode Público para um único objetivo: obter o melhor resultado possível para os implicados, o que, sabe-se, demandará esforço e investimentos por anos, se não décadas.
Todos os documentos a que me refiro, como disse, são públicos e acessíveis a quem por eles se interessar. Aos que tratam os valores decorrentes do TTAC como se fossem um crédito comum, desses decorrentes de reparação de danos por corriqueiro acidente de automóvel, vale a leitura do “Considerando” do TTAC que esclarece que: “…o objetivo do PODER PÚBLICO [ao optar pela estrutura contratual de reparação e compensação de danos via celebração do TTAC] não é a arrecadação de valores, mas a recuperação do meio ambiente e das condições socioeconômicas da região”.